domingo, 18 de maio de 2008

RUBEN ALVES- mal sabia ele...



Tomei conhecimento do texto abaixo na primeira reunião do ano de 2008 com a coordenação da escola em que trabalhava. Sua leitura só me fez confirmar a minha escolha: estava na hora de ousar a mudança. A decisão, na verdade já estava tomada. Os sinais apareciam, mais e mais claramente...assim como este texto por exemplo. Educar para quê? Para quem? e principalmente: o que e como?? Sempre digo aos meus alunos que eu não ensino nada - o aluno é que aprende, se assim o desejar...É preciso intenção no aprender e atenção para tanto...pelo menos no ambiente 'formal' que conheço... boa leitura!!!

Abaixo o texto (Rubem Alves)
Minha neta parecia absorta, lendo seu caderno de biologia. Dezesseis anos, idade tão bonita, o mundo inteiro a ser compreendido... Especialmente em se tratando de biologia. Haverá coisa mais fascinante que a vida? Toda mocinha de 16 anos quer compreender a vida, pois a vida está borbulhando dentro dela! Olhei para o caderno: ilustrações coloridas, tudo tão organizado! Tive inveja. Na idade dela eu também estudava biologia, mas os cadernos eram diferentes. O professor ditava a matéria, fazia desenhos na lousa, a gente copiava. Na prova, a gente tinha de repetir o que o professor havia falado, ou seja, o que a gente tinha escrito no caderno. Mas esses tempos tenebrosos já passaram. Hoje, os processos de avaliação são outros.Mas não havia entusiasmo no seu rosto. Nem nada que se parecesse com curiosidade. Era mais uma expressão de tédio. Sei o que é isso. Há textos que reduzem o leitor a uma panqueca que se arrasta pelo chão. Arrasta-se porque tem de ler, mas não quer ler. É por causa desses textos que Barthes disse que a preguiça é parte essencial da experiência escolar. Perguntei o que ela estava lendo. Ela me mostrou um parágrafo com o dedo. Era isso que estava escrito:"Além da catálase, existem nos peroxíssomos enzimas que participam da degradação de outras substâncias tóxicas, como o etanol e certos radicais livres. Células vegetais possuem glioxissomos, peroxissomos especializados e relacionados com a conversão das reservas de lipídios em carbohidratos. O citosol (ou hialoplasma) é um colóide... No ciosol das células eucarióticas existe um citoesqueleto constituído fundamentalmente por microfilamentos e microtúbulos, responsável pela ancoragem de organóides... Os microtúbulos têm paredes formadas por moléculas de tubulina..."Encontrei ainda palavras que nunca lera: "retículo sarcoplasmático, complexo de Golgi, pinocitose, fagossomo, fragmoplasto, o padrão do axonema é constituído por 9+2, uma referência aos nove pares de microtúbulos em torno de um par central". Parece-me que essa afirmação tem a ver com o rabo do espermatozóide, mas, naquele momento, meus pensamentos estavam tão confusos que não posso garantir.Fiquei curioso acerca da cabeça da pessoa que escreveu isso. Teria de ser um biólogo, cientista, pessoa competente na sua ciência. Se assim não fosse, a editora que imprimiu e vendeu o referido caderno não o contrataria como autor do texto. Todas as informações que ali se encontram são, assim, cientificamente corretas.Mas todo texto é escrito pensando-se numa pessoa que vai lê-lo. Nesse caso específico, essa pessoa será um estudante que terá de aprender as informações que o texto contém. Trata-se, portanto, de conhecimentos essenciais. Se o estudante não aprender, sofrerá a punição devida. Não saberá colocar o "x" no lugar certo. Não colocando o "x" no lugar certo, terá uma nota má. Tirando uma nota má, poderá ser reprovado na escola ou no vestibular. Os conhecimentos do texto, assim, têm um caráter obrigatório. O jovem não pode refugar.O autor do texto, cientista e pedagogo (pedagogo, sim, porque o seu texto dirige-se a um aluno), tem de ser inteligente. Deve pensar no sentido do texto para o estudante. Pelo menos, é assim que acontece comigo.Não me parece que o referido texto seja uma entidade da caixa de brinquedos. Ao lê-lo, não consegui encontrar nem beleza nem humor. Deve, portanto, ser uma entidade da caixa de ferramentas: um conhecimento que vale pelo seu uso prático. Aí, fiquei atrapalhado: por mais que me esforçasse, não consegui imaginar nada de prático que eu pudesse fazer com aquele parágrafo e muito menos a minha neta.

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